Por Antonio Lassance, em Correio do Brasil
No debate sobre o leilão dos aeroportos, o PT precisa assumir a defesa do que fez se é que está seguro do que fez. Ao balbuciarem argumentos frágeis e se constrangerem diante da opinião pública, em uma postura defensiva, muitas de suas lideranças demonstram não ter clareza de para onde sua metamorfose ambulante os está levando.
Leilão dos aeroportos de Guarulhos, Campinas e Brasilia, realizado na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) |
As concessões foram transformadas em algo espetacular, o que foi facilitado pela imagem da batida dos martelos. Mas o PT não está dando nenhuma guinada. O leilão foi absolutamente coerente com o modelo que suas duas presidências, Lula e agora Dilma, montaram e têm posto em operação na relação entre o setor público e o setor privado para uma estratégia de desenvolvimento.
Ficou patente que as marteladas constrangeram alguns petistas, ao ponto de parecerem atingidos nos dedos. Para se defenderem, usaram um argumento frágil, que é um remendo, um esparadrapo para cobrir o dedo dolorido: são concessões, jamais privatizações.
É verdade que não houve venda de patrimônio público. Ninguém proferiu a palavra mágica “vendido”. Isso de fato faz muita diferença. Mas as concessões são a entrega de serviços à gestão privada. É uma forma de privatização sim, e o PT deveria parar de dizer que se trata de outra coisa. Ninguém acredita.
Os tucanos se refestelaram e relaxaram com a cena. Mas, ao tentarem igualar o leilão dos aeroportos ao que foi a privatização da telefonia, da Vale, da CSN e tantas outras estatais, quase nos levam a crer que a própria Infraero foi leiloada. Mas não foi, e continua valendo o ditado, ‘uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa’.
Algumas informações básicas simplesmente desapareceram, tanto entre os que criticam, quanto entre os que dão vivas à operação. A gestão dos aeroportos pelas empresas privadas irá gerar recursos que irão para o Fundo Nacional de Aviação Civil. Os trabalhadores da Infraero têm garantia de estabilidade no emprego. A Infraero detém 49% de participação nos consórcios ganhadores e poder de veto sobre as decisões. Ela passa a se associar a grupos privados, doravante, como a Petrobrás tem feito na exploração do pré-sal, como os Correios fazem com o Bradesco, como a Caixa sempre fez com as lotéricas, como o Banco do Brasil sempre fez com a Visa e a Mastercard. Ou seja, quem hoje ri dos leilões está rindo atrasado. A piada já foi contada faz tempo.
Ao mesmo tempo, é preciso que fique claro que os críticos do leilão estão, na prática, defendendo que o Estado faça questão de arcar com 100% do anúncio que diz “a Infraero informa”, do painel com os horários de vôo, da conta da limpeza dos banheiros, dos funcionários terceirizados que conferem os bilhetes de passagem na entrada dos portões de embarque, do carregamento das malas, dos guichês de informação, e, claro, das obras de ampliação. Qual a “razão de Estado” desses serviços, mesmo que eles sejam essenciais a qualquer aeroporto?
Os tucanos saboreiam uma vitória de Pirro. Comemoram algo que deveria preocupá-los. Ao aplaudirem a operação e ironizarem o governo, mais uma vez escondem a bandeira que os diferenciava: a da venda do patrimônio público e desencargo do Estado com determinadas áreas, passando-as para o pleno domínio empresarial. Abdicam de mais um assunto de sua pauta, quando, a rigor, deveriam estar defendendo a venda dos aeroportos e externar insatisfação com as meras concessões e com o poder da Infraero sobre os consórcios vencedores. De novo, o liberalismo brasileiro se esquivou de colocar a cara a tapa.
Partidos egressos de dissidências do PT, como o PSOL e o PSTU, também estão comemorando o que a eles parece uma desgraça. Mas terão o ônus de defender antigo “status quo” do sistema aeroportuário, num momento em que o transporte aéreo se popularizou e a crítica ao seu desempenho se intensificou.
Quando Lula enfrentou Alckmin em 2006, empunhou a bandeira da defesa do patrimônio público, contra a privatização. O candidato tucano se viu obrigado a aparecer usando um boné do Banco do Brasil e vestindo macacão com as marcas da Petrobrás e dos Correios.
O debate a favor e contra a privatização não era genérico, e sim específico. Tinha o nome e o endereço de cada uma das estatais acima referidas. Fazia todo o sentido, pois, no último ano da presidência FHC, em 2002, o Ministério da Fazenda oficialmente falava na necessidade de uma nova etapa do programa de privatizações e citava algumas dessas empresas como alvos imediatos.
O poder público todo dia bate o martelo, ou seja, leiloa a compra de serviços. Dos clips aos cartuchos para impressoras, do lápis aos computadores, da terceirização da vigilância aos serviços de recepção e limpeza. Garantir a propriedade pública e a operação estatal pode até ser um alívio para a consciência de muitos, mas o debate econômico sobre o papel do Estado na economia vai, além disso.
A questão essencial é sobre a relação do Estado com o setor privado para uma estratégia de desenvolvimento. O uso de recursos do BNDES em apoio às multinacionais brasileiras e aos grandes projetos de infraestrutura, o papel dos bancos públicos para o crédito à produção, os fundos de fomento à inovação, a contratação privada de serviços de saúde com recursos do SUS, a utilização de instituições privadas como complemento ao ensino superior e técnico, a lei de incentivo à cultura, entre tantos outros, são temas que mereceriam atenção redobrada. Sem precisar da cena do martelo, tudo isso já está posto. Em todos os casos, há bons exemplos e grandes problemas nessa relação.
O governo não está abandonando seu programa, nem dando nenhuma guinada. Qual a incongruência na concessão de aeroportos, se já se fazia concessão de rodovias? Qual o problema do modelo adotado para os consórcios dos aeroportos, com dinheiro do BNDES e com a associação entre empresas estatais e empresas privadas? Ele já vinha sendo adotado para as maiores obras de infraestrutura do PAC. Tal trajetória não começou na semana passada.
Que o PT abandonou muitas de suas teses do passado é absolutamente verdade. Em 1990, o PT já não era mais aquele dos anos 80. E o governo Dilma não é o governo Lula. A metamorfose ambulante continua sendo uma das características do PT. Mas, até aí, nenhuma novidade. Todas essas mudanças foram exaustivamente anunciadas, eleição após eleição. O debate não é se o PT está ou não mudando, é sobre para onde essa trajetória tem levado o Brasil. Neste ano, já poderemos fazer o balanço de uma década de mudanças consolidadas ou ainda em curso, e seus respectivos resultados e dilemas.
O martelo, neste momento, tem o efeito da varinha dos mágicos: desviar o olhar para o que deveria ser o centro de nossa atenção, ou seja, o coelho que está saindo de dentro da cartola.
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